O que o discurso moralista do senso comum tem a ver com a cultura do estupro?

(Foto: Breno Natal)

Na mesma semana em que o ministro do Supremo Tribunal Federal autorizou a voltar para casa um ex-médico (condenado a mais de 180 anos de cadeia pelo estupro de pacientes), o vídeo de uma performance no MAM (Museu de Arte Moderna de São Paulo) é o assunto do momento nas redes sociais. 

A performance de um artista nu sendo tocado na canela (sem nenhuma conotação erótica) por uma menina acompanhada da mãe desperta o imaginário do medo de tal forma que o absurdo da soltura do ex-médico e maníaco praticamente se perdeu entre as notícias da semana. Enquanto o artista tem sido alvo de ataques na Internet, o estuprador vai para casa, sem tornozeleira, assim de boas. 

Como produtora de projetos de Hip Hop, gostaria de me posicionar a respeito do assunto. Compreendo que pelo menos questionar o senso comum é ter bom senso. 

O discurso moralista - de senso comum - considera toda nudez um ato de erotismo... determina que o contato de uma criança com o corpo nu dessexualizado de um artista é pedofilia... condena (pelo sim, pelo não) e predomina.

O discurso moralista não admite o corpo dessexualizado, o senso comum sexualiza o corpo, favorecendo a ideia de que o corpo descoberto é uma vergonha, por isso a mulher não poder usar shortinho: "Tá com shortinho curto, pediu pra ser estuprada, não sabe como esse mundo tá cheio de estuprador? Queria o que com essa roupa? Ela se expôs, está pedindo sexo." Quem no Brasil já não ouviu algo parecido?!... Isso é a cultura do estupro.

Para o discurso moralista o corpo exposto está pedindo sexo... o peito de uma lactante não pode ser exposto, nem para alimentar o seu bebê. É muito triste pensar num corpo reduzido apenas à função sexual. É doentio.

O Brasil hoje é o país líder em cirurgias plásticas, corpos biônicos, siliconados, padrões que correspondem à lógica do corpo que só serve para o sexo. E essa pressão está em toda parte, da pornografia à propaganda de cerveja, trabalham a lógica de consumo que objetifica os corpos. Dentro dessa lógica, o excesso de sexo e de corpos sexualizados, como objetos de consumo, isso tudo favorece a cultura do estupro.

A relação da sexualidade com o corpo, imagina isso no imaginário de uma criança...! O corpo nu exposto à criança não pode. Então, que relação essa criança vai ter com o corpo feminino ou masculino, se ela não pode nem ver o órgão sexual... Quero dizer, numa exposição de arte, uma criança não pode tocar no corpo de um adulto sem estar coberto, porque tocar num corpo nu é considerado pedofilia, mesmo que não haja nenhuma ideia de erotismo na situação, simplesmente porque fere a conduta moral, os bons costumes da família brasileira. Vale dizer, família esta que se entope de antidepressivos e entorpece seus filhos com uma droga chamada ritalina, porque as crianças simplesmente já não podem ser crianças. 

A polêmica da semana gira em torno desse episódio que reacende a discussão sobre o cerceamento à liberdade de expressão artística. E o que a gente tem a ver com isso?... Para resistir contra a cultura do estupro, é preciso duvidar do senso comum. 

Se nos museus a arte contemporânea (que rompe com o senso comum) é censurada pelo discurso fácil, na pista, o/a artista de rua é reprimido/a pelo Estado e seu braço armado: a PM (Polícia Militar), amparada pelo discurso moralista, afinal o senso comum não diferencia arte de rua e vagabundagem. 

Como se não bastasse, a arte de rua é ameaçada também pela onda de armamento da Guarda Municipal. Mas o senso comum defende o armamento da GM, com o argumento de que é para a segurança de todos; acredita na prisão; acha que a solução para o problema das drogas é a guerra; defende a condenação do usuário de drogas; estimula o consumo do álcool, sexualiza o corpo e, ao mesmo tempo, defende a proibição do aborto. 

O argumento do discurso moralista não se fundamenta. É um discurso hipócrita com a boca cheia da expressão "novinha"... que sexualiza o corpo desde a infância, é um discurso machista que reforça a ideia de que o homem é um estuprador em potencial. É o discurso que elege o ideal de mulher "bela, recatada e do lar", que padroniza a beleza feminina clássica, com traços infantis (olhos grandes, cílios longos, cabelo fino, nariz delicado, voz macia, corpo frágil...), ora, é o padrão físico de uma criança! O moralista de senso comum defende um discurso pedófilo.  

Lembrando que "a moral não é uma área do conhecimento. Moralidade é um nome que se refere ao conjunto de ideais, paixões e pensamentos que formam o modo de ser de um indivíduo. Se este modo de ser será ético ou não são outros quinhentos."

Ou seja, "quem busca se guiar pela moral, não busca aperfeiçoar o ideal de moralidade em si, mas sim agir perfeitamente nos termos já definidos da moral da sociedade na qual vive".

Limitar o corpo à sexualidade é algo extremamente nocivo para a saúde mental. Se a gente for pensar cultura, tem uma construção histórica, de modo de vida, de modo de se relacionar que tem a ver com a cultura do estupro, a mãe não poder amamentar, a menina não poder usar roupa curta, os tabus que envolvem a nudez, a vergonha... a própria lógica de ser mulher e ser homem (os papéis sociais de gênero) contribui para a cultura do estupro. 

Engrossar o coro do discurso moralista do senso comum, que sexualiza os corpos e limita a nudez ao sexo, é contribuir para a cultura do estupro. E a gente não vai aceitar isso!

"Rap é compromisso", como cantou Sabotage, e o nosso compromisso é com a transformação de uma realidade que já não aceitamos. GOG fala que "O estudo é o escudo"... Sim, mas de que estudo estamos falando? Aquele que desperta o Conhecimento dentro de nós mesmos?... Ou o discurso fácil e repetido que reproduz fascismos??

Deixo aqui este convite à reflexão e um texto foda no link, dica de leitura da Estela Cardoso, estudante de Psicologia na UFF e voluntária da Biblioteca Engenho do Mato (BEM): Toxicômanos de identidade - subjetividade em tempo de globalização* -  Suely Rolnik. Seguimos trabalhando...


(Texto: Aline Pereira/Estela Cardoso) 

Ref.: MILLIET, Octavio. Ética e Moral. Ou seja - Comunicar para revolucionar,  Comunicação Social/Direitos Humanos/Featured/Filosofia.


Comentários

  1. Parabéns pela lucidez com que abordaram o tema, pois é muito importante que haja reflexão sobre esta hipocrisia nos dias atuais.

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    1. Oi, Priscila! Que bom ler suas palavras, mestra. Gratidão! 👑💜

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