Por que o "freestyle gay" é homofóbico?



Eu hoje não vim falar da Batalha das Musas, hoje estou aqui como produtora cultural e mediadora no circuito de seletivas RJ, um dos estados mais tradicionais e polêmicos da disputa pela vaga no Duelo de MCs Nacional, a maior batalha de MCs do Brasil. Como se trata de uma competição muito acirrada é durante esse período que podemos observar os pontos mais problemáticos no movimento em geral. Aproveito esse espaço para compartilhar com vocês as minhas percepções sobre a cena fluminense em 2019, vamos direto ao ponto...
Machismo
Continua muito violento o machismo na cena das batalhas, mas agora entre as pessoas que organizam esses encontros há um consenso de que o machismo é um problema a ser combatido, além disso, produtoras e produtores de batalhas em geral concordam que há machismo na cena (e isso hoje é praticamente unânime), o que faz diferença se comparado aos anos anteriores, por exemplo, quando boa parte dos organizadores das rodas culturais do estado do RJ nem sequer admitia a existência do machismo nas batalhas. Ou seja, nos últimos dois anos as organizações das rodas no RJ avançaram na luta contra o machismo em batalhas de MCs, mas esse suposto avanço ainda está longe de ser o bastante.
Homofobia
Vou trazer um pouco da minha visão sobre a homofobia dofreestyle gay”. Ainda que grande parte da cena considere uma forma aceitável de entretenimento, o freestyle gay” promove diversão às custas de um grupo minoritário que luta por seus direitos civis, e, considerando que estamos no país tido como o mais homofóbico do mundo, isso não é aceitável. Ainda mais na conjuntura atual, é uma vergonha para o movimento que isso esteja acontecendo, e eu vou explicar rapidamente o porquê. Afinal de contas, por que o "freestyle gay" é homofóbico?
O “freestyle gay” é homofóbico porque está ligado à ridicularização de homossexuais, não se trata apenas de imitar o diferente. Então, assim como o black face - uma prática na qual pessoas negras eram ridicularizadas para o entretenimento de brancos - no caso do “freestyle gay”, estereótipos negativos vêm associados às piadas, quer dizer, isso é discriminatório porque reforça um estigma de promiscuidade, e (sério) relacionar homossexualidade com promiscuidade é uma forma de preconceito. Pesquisas recentes sobre o comportamento sexual de pessoas héteros e homossexuais apontam para o fato de que esse estigma não passa de um tabu.
No livro “O que é lugar de fala?”, a filósofa Djamila Ribeiro confere uma ênfase ao lugar social ocupado pelos sujeitos numa matriz de dominação e opressão, dentro das relações de poder, ou seja, às condições sociais que autorizam ou negam o acesso de determinados grupos a lugares de cidadania. Trata-se, portanto, do reconhecimento do caráter coletivo que rege as oportunidades e os constrangimentos dos sujeitos pertencentes a determinado grupo social. 
O freestyle gay” foi uma preferência da plateia. De acordo com uma parte considerável dos organizadores de rodas culturais do Circuito RJ, as preferências da plateia são um dado imparcial, portanto, um direito com base ética. Infelizmente em 2019 a cena das batalhas de MCs no RJ mais uma vez afrontou a tentativa de se colocar em prática o discurso de combate aos preconceitos. E foi além, o fez utilizando-se da ironia para justificar de todo modo que o percurso das vítimas seria o de um aprendizado acerca da moral. 
Acontece que o interminável  LGBTcídio está para contemplação, não como lição de moral, e o enfrentamento do machismo, da LGBTfobia tem se tornado cada vez mais necessário. 






O “freestyle gay”  é ofensivo porque prega estereótipos negativos sobre homossexuais, com interpretações imprecisas e profundamente ofensivas, mas que muitos héteros ainda enxergam como uma forma aceitável de entretenimento.

Considerando a ocorrência de uma batalha com freestyle gay” em uma das etapas pré seletivas, as opiniões se dividiram. Isso porque entre os itens mais subjetivos no regulamento do circuito estadual estão os critérios de avaliação, penalização e desclassificação de MCs - precisamente o item 13) “MCs que propaguem nas Batalhas discursos de ódio em geral (racismo, homofobia, machismo etc) devem ser desclassificados”.

O núcleo gestor do Circuito RJ respondeu às críticas (a maioria feita por mulheres organizadoras de batalhas e participantes do circuito): "O fato é que algum gay sentiu-se desrespeitado então não restam dúvidas que houve sim homofobia. porém diante da falha das organização, dos jurados e apresentador no sentido de consentirem a realização do freestyle gay, decidimos validar o resultado e nos comprometermos a realizar debate público sobre o assunto para incorporarmos novas diretrizes no Regulamento 2020. a fim de melhorarmos a nossa atuação e evitarmos que tal fato lamentável se repita. Nossas sinceras desculpas ."
Muitos acreditam que várias pessoas que praticam homofobia não têm a intenção de ofender ou de serem homofóbicas. Mas eu sinceramente acredito que o fato de desconhecer a história da luta LGBT+ não pode ser usado como desculpa.
Esses casos são exemplos de como os fazedores de cultura de rua no Rio de Janeiro ainda precisam se desconstruir se quiserem um mundo livre da violência do machismo, pois no âmbito das batalhas de MCs isso não está efetivamente acontecendo.

MCs influentes, famosos, formadores de opinião e a mídia especializada em particular deveriam ter um papel fundamental no debate sobre como a reprodução de estereótipos gera barreiras à efetivação de direitos. Acredito que seja fundamental para a saúde do movimento envolver os meninos e homens que participam das batalhas de MCs na superação dessa cultura violenta.

Aqui quem fala é Aline Pereira, sou produtora cultural ativa na cena das rodas culturais no estado do Rio de Janeiro, desde 2016 coordeno o processo seletivo no RJ para o Duelo de MCs Nacional, contribuindo para o mapeamento das batalhas de rima no estado. Também participo na produção da Batalha das Musas, um ponto de encontro no contexto das batalhas de MCs livre da violência contra meninas e mulheres, e acho fundamental refletir sobre o que a rua está nos ensinando.

Comentários

  1. 👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏👏

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  2. A senhora simplesmente deu lição. Obrigada por se expressar e se posicionar! <3

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